Ela se casou com vinte e dois anos. Seu marido tinha apenas vinte. Ela virou a mulher perfeita. Nascera no ano de 1929, aquele terrível ano da quebra da Bolsa de Valores. Mas nada disso a interessava. Não. Sua vida só começou a partir do momento em que se casou.
Ela era uma mulher bonita. Seu sorriso, seu nariz, sua cor. Até suas orelhas eram bonitas! E seu marido tinha aquele porte aristocrático - aquele garbo natural, o bigode fino entre o nariz e os lábios e o sorriso de canto. Eles eram um casal bonito.
Ele passava o dia fora, no trabalho. Ela passava o dia em casa - mas não trabalhava, eles tinham empregadas. Ela passava o dia lendo, lendo, lendo. Tinha milhares de livros em casa - a maioria, de uma velha editora já acabada, chamada "Biblioteca das Moças". Talvez você ria ao imaginar o tipo de livro que ela lia, mas eram romances - talvez - complexos. Eram romances elaborados. Eram simplesmente romances, e a maior ação deles seria, no máximo, o mocinho defendendo a honra da mocinha. Mas ela amava esses livros. Talvez - e só talvez - por se identificar com as mocinhas.
Ela não lia só isso, claro. Lia "Dom Quixote", "Dom Casmurro". Lia "Memórias de um sargeto de milícias", "Memórias póstumas de Brás Cubas". Lia "Lucíola" e lia "Helena". E todos esses eram seus livros, seus bens mais amados, os quais deixava guardados dentro de um baú. Só houve um livro que ela leu e não gostou, por isso, deu para a filha de sua irmã: "Os três mosqueteiros."
Quando sua primeira filha, deram-lhe o nome da avó. Ele, talvez, tenha ficado um pouco insatisfeito - queria logo um moleque na casa. Mas a menina também lhe daria bastante trabalho: era faceira, gostava de flertar e namorar. Mas saiu de casa logo. Completou 18 anos, casou e foi embrenhar-se pelo mundo, longe dos pais.
Depois dela, existiram mais cinco filhos: quatro homens e uma mulher. Essa talvez não fosse tão bonita quanto a primeira filha, não conquistava tantos corações, mas era - de certa forma - um orgulho: foi a única que se preocupou em prestar faculdade, em estudar, em ser alguém na vida.
(desses irmãos, agora, ela não tem a qualidade de vida mais alta. A irmã casou-se com um professor de faculdade, e vive luxuosamente - mas não é um alma pobre. Agora, aos cinquenta e poucos anos, resolveu fazer faculdade. Os outros irmãos, todos vivem num nível baixíssimo, de quem não se preocupou com nada na vida.)
E ela tinha uma doença - não uma, várias. Osteoporose, diabetes, problemas na pressão, no coração. A osteoporose foi a primeira a agir, ela só conseguia andar de muletas. Mas andava mesmo assim, não é? E tinha netos, muitos netos, que visitavam aquela cidadezinha interiorana só por causa dela. E ela, satisfeita, sempre comprava caramelos para dar ao netinhos. E, quando eles chegavam, ela sempre estava preparando um delicioso sorvete de maracujá.
E daí que passaram-se anos assim, até o fatídico dia em que ela escorregou no pano molhado e quebrou o fêmur. E teve que depender de tudo - da cadeira de rodas; do marido que - com a idade - tornara-se controlador e amargo (ele não gostava mais de festas (ele, que sempre fora tão festeiro!), ele não gostava mais de crianças (ele, que sempre recebia os netos com o mais largo sorriso!), ele não gostava mais de nada (ele, que a havia conquistado por gostar tanto de tudo...)); dos filhos, dos hospitais. Hospitais. Essa palavra dava-lhe arrepios. Significava ter suas veias furadas, significava ter de tomar remédios para dormir, significava que, novamente, tinha algo errado. E todo mês ela era levada para tomar bolsas de sangue - sangue que substituía aquele que ela havia vomitado no dia anterior.
Nos cinquenta e cinco anos de casados, em meio a uma comemoração forçada - como ele fez questão de frisar; em meio a todos aqueles que mal ligavam para ela, que só iam lá para comer, comer e comer - e, depois, para reclamar de tudo aquilo; em meio a desgraça que se tornara a sua vida - como ela fazia questão de falar para qualquer ser ouvinte próximo; ela vomitou sangue em um dos netos.
Ninguém, é claro, se importou em como seria traumático isso para a neta. Só se importaram - e com razão - em levá-la ao hospital. E, no dia seguinte, ele reclamava, era tudo culpa das festas. Nem um dos filhos aguentava, mas eles tinham que aguentar. Era obrigação de família, não era?
Ela tinha setenta e nove anos e era tão amarga! Ela não lia mais, ninguém lia para ela. Ele passava o dia na mercearia - todo aquele garbo havia se perdido. Ela passava o dia sentada na cadeira de rodas, sem nada fazer, a não ser pensar em tudo o que havia perdido. Ela passava o dia deitada na cama, dormindo para se esquecer da vida terrível que tinha que levar. Ela não podia mais fazer nada que gostava - ela que amava se perfumar... ele havia proibido o uso de perfume! Era inútil, para quem ela iria se arrumar agora?
Quando as famílias iam visitá-la, quando o silêncio se instalava, ela sempre soltava um suspiro choroso e perguntava a Deus porque não morria logo. Quando ela fez oitenta anos e estavam todos na comemoração - será que ela conseguiria sobreviver mais um ano? -, perguntaram-na: "Gostou da festa?"
E ela, muito mudada por cinquenta e oito anos, disse: "Que festa?" - e, retornando aos 22: "... Eu não dancei com ninguém..."
Espero que ela morra sonhando com uma valsa.
Quero falar um pouco sobre "A Baleia"
Há um ano
4 comentários:
Sua avó?
Own, Morg. D=
bonito e triste.
:*
Nossa, Morg, que texto lindo.
Fazia muito tempo que eu não lia seu blog o.o
Mas enfim. Eu amei. A história me envolveu muito do começo até o fim. Muito triste, mas... não sei, muito real. É muito legal quando você lê um texto e, depois de lê-lo, você realmente sente que conheceu a personagem. Conhecer no sentido de... tê-la como amiga, ou algo assim; conviver com ele, mesmo que pôr alguns minutos (que às vezes representam uma vida inteira).
Adorei mesmo ♥
(não vou poder entrar no MSN já já tô saindo)
Postar um comentário